Mundo

A mentira do direito à moradia digna


 
Por Víctor David López*
 
Olá, bem-vindas e bem-vindos ao Nocaute na Espanha.
Numa noite da semana passada, o meu telefone tocou e era um dos coordenadores da organização Plataforma dos Afetados pelas Hipotecas, as parcelas do financiamento para compra de imóveis. Eles trabalham há muito tempo contra os despejos junto com outras organizações, por exemplo, a Stop Desahucios (Stop Despejos). A remoção virou esporte olímpico na Espanha na última década.
A ligação era uma convocação para uma ação contra um despejo programado para dias depois. Eles juntam meios de comunicação e o maior número possível de pessoas na porta da casa, esperando a chegada da polícia. O tempo passa e as coisas não mudam por aqui. Eu estive há três/quatro anos nos acampamentos que as pessoas removidas tinham na porta dos principais bancos espanhóis. Tempos atrás, os bancos ofereciam todo tipo de possibilidades pros grandes empréstimos, para o financiamento de uma moradia caríssima para o trabalhador médio, sem falar das classes mais baixas. Depois chegou a crise e a população não podia continuar pagando. E os bancos não têm piedade. As famílias acabaram na rua.
A Constituição espanhola, esse livro que às vezes parece realismo mágico, deixa claro no artigo 47 que: “Todos os espanhóis têm direito a desfrutar de uma moradia digna e adequada. Os poderes públicos promoverão as condições necessárias e estabelecerão a norma específica para tornar esse direito efetivo, regulando a utilização do solo dentro do interesse geral para impedir a especulação.” Possivelmente, se as trabalhadoras e os trabalhadores tivessem o hábito de ler os direitos trabalhistas e todas as espanholas e todos os espanhóis tivessem o hábito de ler a Constituição de 1978, o nível de vida do povo mudaria muito.
Mas é complicado se organizar pra luta. Aliás, o governo dificulta ao máximo essa organização. A nova lei de segurança cidadã, por exemplo, criminaliza os movimentos de apoio nos despejos dos moradores. O normal era as pessoas ficarem sentadas no chão na frente da polícia quando o morador ia ser expulso da sua casa, protestando, gritando, ajudando. Agora a resistência pacífica à autoridade virou crime e a polícia tem todo o direito de levar essa pesoa à delegacia caso participe das ações de apoio.
O direito à moradia digna que alguém incluiu na Constituição Espanhola, por enquanto, já era, sumiu, é história, é mentira. As pessoas não podem pagar o altíssimo preço dos imóveis e com isso ficam na rua. Para o governo os direitos da banca são muito mais importantes. Por isso resgataram os bancos financeiramente; bancos esses que, ao mesmo tempo, estavam castigando o povo. E a especulação imobiliária continua, claro: gente sem casas, casas sem gente.
 
* Víctor David López (Valladolid, Espanha, 1979). Jornalista, editor literário e escritor. Colabora na Radio Nacional da Espanha e escreve no jornal El Español. Trabalhou nos jornais espanhóis As, Marca e La Razón. É co-diretor da editora madrilena Ediciones Ambulantes, especializada em literatura brasileira e sobre o Brasil. É autor dos livros “Maracanã, territorio sagrado” (2014), “Brasil salta a la cancha” (prólogo) (2016) y “Brasil, Golpe de 2016” (prólogo). Twitter: @VictorDavLopez

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